Enunciado de súmula vinculante proposto pelo Defensor Público-Geral da União pode ter como efeito a restrição de acesso às ações e serviços públicos de saúde.
O Defensor Público-Geral da União pleiteou ao Supremo Tribunal Federal - STF -, ainda em dezembro de 2008, a edição de súmulas vinculantes distribuídas como Proposta de Súmula Vinculante nº 4 - PSV nº 4 - com o objetivo de tornar expressas:
1) a “responsabilidade solidária dos Entes
Federativos no que concerne ao fornecimento de medicamento e tratamento médico
ao carente, comprovada a necessidade do fármaco ou da intervenção médica,
restando afastada, por outro lado, a alegação de ilegitimidade passiva
corriqueira por parte das Pessoas Jurídicas de Direito Público”;
2) “a possibilidade de bloqueio de valores
públicos para o fornecimento de medicamento e tratamento médico ao carente,
comprovada a necessidade do fármaco ou da intervenção médica, restando
afastada, por outro lado, a alegação de que tal bloqueio fere o artigo 100,
caput e § 2º da Constituição de 1988” .
O aparente fortalecimento da tutela jurisdicional do direito à saúde por meio da definição pelo STF da responsabilidade solidária dos entes federados e da possibilidade de bloqueio de verbas públicas nas ações que versem sobre o direito à saúde esconde uma perigosíssima armadilha: a instrumentalização da via judicial de garantia do direito à saúde para os carentes.
Já afirmamos diversas vezes neste espaço que o traço diferenciador do direito à saúde no Brasil e que marca o pioneirismo da Constituição de 1988 no ordenamento jurídico brasileiro é assegurar a saúde como direito de todos. Trata-se da principal bandeira do movimento da reforma sanitária brasileira, que surgiu na década de 1970 e consolidou-se na década de 1980: defesa da saúde como direito de cidadania. É a consagração de um sistema nacional de saúde de característica solidária.
Essa bandeira, já se disse, foi assegurada no texto constitucional, que reconheceu a saúde como direito fundamental (direito social - art. 3º) e impôs a todos os entes da federação o dever de desenvolverem ações e serviços para a promoção, proteção, cura e recuperação da saúde (art. 23, II, art. 30, VII e art. 196).
Trata-se a saúde de direito imprescindível para a vida com dignidade. Não por outra razão, o constituinte definiu que as ações e serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados, têm relevância pública.
No âmbito coletivo, não há dúvidas que diversas ações de saúde têm impacto coletivo. Sobretudo as ações promocionais e preventivas são direcionadas a todas as pessoas, bastando lembrar o papel da vigilância sanitária na fiscalização de produtos, estabelecimentos e alimentos, bem como das ações de vigilância epidemiológica no controle de vetores que atingem, indistintamente, as pessoas.
A complexidade dos tempos atuais impede o estabelecimento de um apartheid na saúde, já que diversos agravos atingem indistintamente os membros das diversas classes sociais e devem ser tratados como questão estratégica de Estado, como ocorreu, recentemente, com o controle das ações de enfrentamento da pandemia de gripe suína.
De mais a mais, é importante destacar que a seguridade social, composta por saúde, previdência e assistência social, assegurou aos necessitados, ou seja, carentes, a assistência social (art. 203 da CR/88). Não há na Constituição ou nas leis que tratam do sistema de saúde brasileiro qualquer dispositivo que estabeleça critério de renda para acesso às ações e serviços de saúde. Pelo contrário, a recente LC 141/12 apenas admite como gasto público em saúde aquele que for feito para ações e serviços de acesso universal.
Assim sendo, a aprovação da PSV nº 4, que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal (art. 103-A da CR/88), constituirá grave inconstitucionalidade - já que restringe direito fundamental - e retrocesso de conquista social obtida a duras penas pela sociedade brasileira.
Apesar do longo tempo de tramitação, o procedimento continua ativo no STF. Esperamos que o Pretório Excelso, caso venha a examinar o tema, não deixe de reconhecer o caráter universal do direito à saúde, princípio basilar de nosso sistema de saúde.
Caso você queira ler mais sobre o princípio da universalidade das ações e serviços públicos de saúde, clique aqui para ter acesso a artigo de nossa autoria sobre o tema, publicado no Boletim do Instituto de Saúde de São Paulo.
Acompanhe o andamento da PSV nº 4 no STF.
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