O post anterior gerou um debate muito enriquecedor com meu amigo, Dr. Antônio Joaquim, no facebook. Procurador de Justiça da Procuradoria de Justiça especializada na defesa de Direitos Difusos em Minas Gerais e ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde de Minas Gerais - CAO-Saúde, o amigo me fez as seguintes provocações:
“Na minha opinião, nós nos tornamos uma sociedade hipermedicada. Os médicos infelizmente foram muito bem treinados pela indústria farmacêutica, e o que aprenderam foi a pegar o bloco de receituário. Acrescente-se a isso o fato de que a maioria dos médicos está muito pressionada em termos de tempo, em decorrência das exigências das administradoras de planos de saúde, e podem pegar aquele bloco com grande rapidez. Os pacientes também aprenderam muito com os anúncios da indústria farmacêutica. Eles aprenderam que, a não ser que saiam do consultório médico com uma prescrição, o médico não está fazendo um bom trabalho. O resultado é que gente demais acaba por tomar medicamentos quando pode haver modos melhores de lidar com seus problemas.” (ANGELL, Marcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. São Paulo: Record, 2007)
"Quem define quais são as necessidades? O Leviatã? Os "científicos"? Acho que os interesses e influências são inevitáveis. O importante é identificar quais são os interesses e decidir informado. Muitas vezes somos manipulados por interesses cuja origem, e direção, desconhecemos..."
Os questionamentos do colega interlaçam Estado, ciência e mercado. E, quanto ao Estado, ainda podemos analisá-lo sob o aspecto de suas instituições (estrutura normativa) ou de seus agentes, verdadeiros atores sociais, com interesses próprios, não necessariamente coincidentes com os interesses da população ou mesmo do grupo de sustentação do governo. Tema complexo para um blog e para minha formação e conhecimentos limitados.
Entretanto, partindo da compreensão da política de saúde prevista na Constituição e normatizada também na Lei 8080/90 (lei orgânica da saúde), parece-me possível encontrar algumas respostas, inclusive com legitimidade, sobretudo levando em conta que as normas constitucionais sobre saúde resultaram de ampla mobilização popular durante o período da redemocratização do país, culminando com a constituinte.
Nesse rumo, a definição da saúde como direito fundamental (art. 6º), impõe sua correlação com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). De outro lado, a cláusula de universalidade (a saúde é direito de todos, nos termos do art. 196) leva-nos à inexorável conclusão de que a todos assiste igual direito em abstrato.
Certo que todos têm direito à saúde para a vida com dignidade. Mas em termos práticos, como fica a questão no âmbito individual e coletivo, sobretudo porque a Constituição também garante a integralidade do acesso às ações e serviços de saúde (art. 196, caput, e art. 198, II)?
Dentre os princípios postivados na lei 8080/90, encontra-se a noção de resolutividade (art. 7º, XII). Ora, até o nível da solução da damanda individual, não há dúvida quanto à garantia do direito, sob pena de se transgredir direito fundamental e o próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Tal diretriz de interpretação parece conciliar, ainda, eventual conflito individual versus coletivo.
No plano coletivo, a definição das necessidades ganha relevância para a alocação dos escassos recursos públicos investidos na área de saúde. De novo, buscamos orientação na Lei 8080/90, que dispõe no art. 7º, VII, o princípio de "utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática". Aqui, a busca de indicadores epidemiológicos traz luzes para o administrador público que queira programar a despesa pública de forma eficiente, como, aliás, exige o texto constitucional (art. 37, caput). Trata-se, em verdade, de uma maneira de promover a Justiça distributiva, que nos remonta a Aristóteles e sua Ética a Nicômaco: os maiores beneficiados na distribuição dos bens sociais devem ser aqueles que mais necessitam.
Entretanto, aqui caminho para a política, autores desta área têm considerado que a implementação de políticas públicas, mesmo quando já objeto de farta normatização, como a saúde, não é tarefa puramente burocrática, com êxito dependente apenas de esmero nas atividades burocráticas. Ao revés, também na implementação há um intensa disputa entre os grupos interessados na área e afetados pelas decisões políticas, havendo necessidade de contínua negociação e, por vezes, de se fazer concessões.
Na saúde, setor que desperta grande interesse econômico como ressaltamos no post anterior, não se pode desconhecer da lógica do capitalismo: criação de necessidades para venda de produtos. Se é assim, o próprio discurso científico pode não ser confiável, posto que influenciado pela indústria.
Acerca do desvirtuamento do uso de medicamentos, eis o que nos fala Fernando Lefevre, Professor Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP:
"No plano individual, toma-se remédio para parar de fumar, emagrecer, aumentar ou desencadear a potência sexual, dormir, aumentar resistência física, poder comer e beber à vontade, dirigir caminhão a noite toda, abortar e para tantas outras coisas que não são doenças." (LEFEVRE, Fernando. Medicamento, lógica de mercado e interesse público. Revista de Direito Sanitário, vol. 3 n. 3, São Paulo, novembro de 2002).
Não dá ainda para deixar de lembrar dos exemplos graves de Marcia Angell, professora do Departamento de Medicina Social da Universidade de Harvard:
“Na minha opinião, nós nos tornamos uma sociedade hipermedicada. Os médicos infelizmente foram muito bem treinados pela indústria farmacêutica, e o que aprenderam foi a pegar o bloco de receituário. Acrescente-se a isso o fato de que a maioria dos médicos está muito pressionada em termos de tempo, em decorrência das exigências das administradoras de planos de saúde, e podem pegar aquele bloco com grande rapidez. Os pacientes também aprenderam muito com os anúncios da indústria farmacêutica. Eles aprenderam que, a não ser que saiam do consultório médico com uma prescrição, o médico não está fazendo um bom trabalho. O resultado é que gente demais acaba por tomar medicamentos quando pode haver modos melhores de lidar com seus problemas.” (ANGELL, Marcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. São Paulo: Record, 2007)
Assim, concluo o post para dizer que, embora tenhamos um quadro normativo, fruto de consenso social apontando para a necessidade indivudal na linha da resolutividade e a necessidade coletiva orientada por indicadores epidemiológicos, não se pode esquecer dos interesses eventualmente pouco visíveis dos atores políticos e econômicos aptos a influenciar governos e desviá-los daquilo que se aproxima do interesse público.