quarta-feira, 2 de maio de 2012

Saúde e mercado

O setor saúde - aqui nos referimos à saúde pública e à saúde suplementar e privada - movimenta vultosas quantias, tratando-se, assim, de área que desperta grande interesse econômico. Para se ter uma idéia, os americanos gastam US$ 200 bilhões por ano apenas com medicamentos vendidos com prescrição médica e esse gasto cresce à proporção de 12% ao ano, segundo informações de Marcia Angell, ex editora-chefe do New England Journal of Medicine e professora do departamento de medicina social de Harvard, no livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, Editora Record, 2007.
As escolhas adotadas pelos governos, dessa forma, têm grande impacto para as atividades de poderosos grupos econômicos, podendo gerar maiores custos ou, até mesmo, limitá-las. Nessa linha, decisões como adotar um sistema nacional de saúde, desenvolver política de medicamentos genéricos ou regular com rigor o mercado de planos e seguros de saúde não passam despercebido pelos grupos de interesse e são objeto de lobby e pressão aos governos.

Segundo Marcia Angell, no mesmo livro:

“A indústria farmacêutica é, de longe, o maior lobby em Washington – e isso já diz muito. Em 2002 ela empregava 675 lobistas (mais que um para cada membro do Congresso) – muitos dos quais haviam sido atraídos de 138 firmas de lobby em Washington a um custo que excedia US$ 91 milhões.”

Michael Moore, no filme Sicko - SOS Saúde, também demonstra como a influência econômica dos grupos do setor saúde interferiu nas decisões do governo americano, que desistiu da estratégia de implementação de um sistema universal de saúde.

Abaixo o trailler:



Além disso, também no plano individual, a ação da indústria da área de saúde, como os laboratórios farmacêuticos, é agressiva para atingir os objetivos de maior lucratividade. Vale tudo como dar presentes, viagens e congressos em lugares paradisíacos para médicos com o objetivo de que prescrevam seus produtos ou promover marketing direto ao consumidor, disseminando a automedicação e a crença de que medicamentos são sinônimo de saúde.

Sobre o assunto, Marcia Angell, na obra já citada, trata a influência dos laboratórios sobre os médicos como forma de suborno e afirma que:

“As conferências geralmente tomam apenas algumas horas durante a manhã, com bastante tempo de sobra para jogar golfe ou esquiar à tarde, e jantares elegantes e entretenimento à noite. Chamar isso de informação, consultoria, pesquisa de mercado ou uma combinação dessas três, mas não de marketing, faz com que os laboratórios não precisem se preocupar com as leis contra o suborno.”

A falta de ética nesse campo também não passou despercebida por Dalmo Dallari:

“A busca de maior ganho, sem qualquer limitação ética, observando apenas as leis de mercado, transformou em mercadoria a própria pessoa humana, seus órgãos e seus componentes, fazendo-se também o comércio, sem considerações éticas, dos cuidados de saúde, dos medicamentos e de tudo que é fundamental para a preservaçào da integridade física e mental da pessoa humana.”[1]

A seguir, o autor enfatiza que:

“(...) a sonegação e o jogo de mercado, os preços exorbitantes, as mentiras sobre as qualidades dos produtos, as falsificações, a propaganda enganosa ou inadequda visando estimular o consumo mesmo que inadequado, o suborno direto ou indireto de autoridades públicas, de empresários e profissionais da saúde e tudo o mais que faz parte da competição econômica está muito presente na área da saúde. Evidentemente, nesse jogo, ninguém leva em conta a existência da ética.”[2]

Assim, nesse plano, o operador do Direito, especialmente o membro do Ministério Público, o Defensor Público e o Magistrado, devem ter redobrado cuidado com prescrições unilaterais apresentadas pela parte afirmando a necessidade de certo tratamento ou prescrição. Antes de agir e decidir, o ideal, a nosso aviso, é ao menos aferir a real necessidade do que se pleiteia e a existência de estudos que comprovem sua eficácia e segurança.

Todo esse quadro, no qual a saúde se tornou puramente uma mercadoria, exige que operadores do Direito, usuários, gestores e profissionais de saúde estejam atentos às interferências e formas anti-éticas de atuação do mercado no setor saúde, com o objetivo de assegurar a efetividade do direito à saúde no interesse da população e não dos grupos econômicos.


[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Ética sanitária. In BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Direito sanitário e saúde pública. Vol. 1: Coletânea de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. p 72.
[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit. p. 80.

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